Das
ladeiras do Pacaembú para as pistas.
Se você nasceu em São
Paulo nos anos 1950 e o seu bairro tinha ladeiras, então é forte
candidato à paixão pela velocidade, que nesses idos era despertada
a bordo de bicicletas e carrinhos de rolemã, que alcançavam
“incríveis” velocidades ladeira abaixo.
Em 1958, quando o
Brasil se redimiria do vexame da Copa de 1950, ao faturar pela
primeira vez a taça na Copa da Suécia, a família Chiarella viveu
uma dose dupla de satisfação – nasceu em 26 de Abril de 1958
Vitor Roberto Chiarella e com certeza os sorrisos de felicidade
somaram-se aos da vitória dos “canarinhos”, como eram chamados
os jogadores da seleção na época.
Vitor cresceu nas
imediações do Estádio Paulo Machado de Carvalho, no charmoso
bairro do Pacaembú. Nas ladeiras do bairro ele descobriu o prazer de
descer as ruas na maior velocidade que conseguisse conduzindo
carrinhos de rolemã ou bicicletas. Também foi lá que aprendeu a
dirigir. Mesmo tendo passado a infância vizinho de um dos mais
importantes estádios de futebol, foi a velocidade que entrou de
forma definitiva na sua vida, e em função da qual vive até hoje.
Quando o Pacaembú tornou-se um bairro mais movimentado havia a opção
de descer as ladeiras do Morumbi. E foi aí mesmo que ocorreu o
primeiro contato com o kart.
Aos dez anos de idade,
dois anos antes de o Brasil vencer a terceira Copa, e um ano antes de
Emerson Fittipaldi se mudar para a Inglaterra, Vitor sentou pela
primeira vez num kart do primo, que era dividido com o amigo Manduca,
futuro proprietário de uma oficina especializada em Porsche.
Um evento ficou marcado
na lembrança na primeira investida. Ele era tão pequeno para o
micro bólido que os seus pés só conseguiam acelerar na ponta, com
as pernas totalmente estendidas. Assim, a primeira acelerada jogou o
corpo para trás, os pés para cima e o kart apagou.
A essa altura, pilotos
brasileiros do kart já disputavam mundiais da modalidade. O kart já
era fabricado no Brasil, e se tornara uma febre que iria se expandir
muito e iniciar vários campeões no mundo da velocidade. O kartismo
estava se tornando um esporte muito atraente para os meninos de
então.
Os pais não aprovaram
a idéia e somente anos depois Vitor adquiriu o primeiro kart, com
recursos próprios. Vitor tinha em 1980 na Rua Margarida, Barra
Funda, uma fábrica de roletes de esteiras transportadoras, sendo
sócio o irmão.
Compraram um kart Mini
Inter pago na forma de crediário (10 vezes). A fábrica tinha um
maquinário básico de manufatura e por isso as peças do kart eram
feitas lá mesmo, assim como a manutenção. Era a época do fusca
rebaixado (este que vos escreve lembra bem disso), com kit's de maior
cilindrada, carburação dupla, comando “bravo” e distribuidor de
Kombi 1200.
O kart era um
equipamento específico de competição, cuja adrenalina era um apelo
irresistivel. O kartismo brasileiro já dava notícias, era uma
modalidade regulamentada, com campeonatos regionais e nacionais, um
esporte em franca ascenção. O kart de Vitor Chiarella chamou a
atenção dos amigos que solicitaram a manutenção de kart's que
viriam a adquirir, e que lhes daria mais emoção que um fusca de
rua.
Começando como
preparador.
A moda pegou e em pouco
tempo a demanda cresceu o suficiente para justificar a cobrança
pelos serviços. Começou a vida de preparador de kart's de Vitor
Chiarella.
Vitor iniciou na
pilotagem somente em 1982. O kartismo dessa época era diferente em
todos os aspectos. No seu primeiro ano fez a etapa inaugural da
novatos em Interlagos, obtendo o terceiro lugar. Depois veio Jaú e
em seguida São Carlos, prova esta que deixou lembranças. Nessa
época eram comuns grid's de 40 a 50 pilotos. A prova de São Carlos
bateu record com 65 inscritos. Tanto que a classificação mereceu um
prêmio à parte, uma taça de prata. Largaram 36 pilotos na prova e
Vitor chegou em quarto.
Em 1983 as coisas
mudaram mais profundamente. Vitor percebeu que poderia evoluir, pois
figurava sempre entre os seis primeiros. O desempenho de Vitor foi
observado por um carioca da fábrica do conhecido cosmético Leite de
Rosas. Guga Ribas ficou sabendo que Vitor era o preparador do próprio
kart e propôs uma parceria na qual Guga fabricaria um chassi no Rio,
com mangas e freio, e os outros componentes seriam fabricados em São
Paulo por Vitor. Esse kart ficou conhecido como “Leite de Rosas”,
e há hoje um exemplar guardado na Kart Zoom, a sede da equipe de
Vitor. Os dois ainda não tinham idéia de que justamente Guga Ribas
alcançaria o grande mérito de tornar-se o primeiro brasileiro
campeão do mundo no kartismo, façanha ocorrida em 1986.
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Guga Ribas, Tchê e Vitor |
Essa parceria durou até
1989 e entre outras coisas deu origem à fabricação de uma roda
inteiriça, pois na época as rodas eram bi-partidas. Essas rodas
eram mais leves, mais largas e tinham offset's diferentes para ajuste
da bitola. O chassi era inspirado no mesmo utilizado por Ayrton Senna
no mundial de kart de 1979.
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Vitor Chiarella e as rodas fabricadas por êle |
Fabricando o próprio
kart a vida de piloto deu lugar à vida de construtor e a atividade
cresceu, o que incluía a manutenção de motores. Foi por isso que a
partir de 1984 o espanhol Tchê, falecido em Abril do corrente ano,
foi procurado por Vitor para fazer a manutenção de motores, a
notória especialidade do espanhol. Tornaram-se amigos que nutriam
admiração mútua, e mesmo depois da morte de Tchê, Vitor continua
a mandar motores para os herdeiros do espanhol.
O kartismo desses idos
era bem mais acessível, mas sempre havia os que tinham mais verba,
empregada em mais recursos. Para se ter uma idéia, hoje um kart novo
custa a metade de um carro popular e na época isso representava ¼
do preço de um fusca.
Nem por isso era um
esporte barato pois havia a manutenção. Por isso Vitor se via na
condição de treinar menos, poupando motores e pneus na sua época
de kartista. Tanto que no seu primeiro ano fez todas as etapas com um
jogo de pneus da Pneubras, fábrica no Rio Grande do Sul, de
propriedade do Sr. Adroaldo. Hoje, tal procedimento é impensável.
Os kart's da época
exigiam mais da imaginação do preparador. Um ponto muito sensivel
em chassis de kart é o ajuste da torção. Não havia elementos de
ajuste específicos da torção, como existem hoje, e isso se
conseguia com a modificação de barras. Por exemplo, Vitor empregava
para essa finalidade uma barra traseira de parachoque, um “X” sob
o assoalho e borrachas de fixação do parachoque que poderiam
diminuir ou aumentar a torção. Hoje esses controles estão
incorporados ao chassi.
Os projetos atuais
facilitam o acerto de tal forma que pode ser suficiente abrir a
bitola dianteira e fechar a traseira em pista molhada. No passado uma
das grandes dificuldades eram os pneus de chuva, de qualidade
questionável, que obrigavam o preparador a 'amolecer' todo o chassi.
Com os parcos recursos da época, isso não era tarefa simples.
Outra dificuldade diz
respeito às dimensões dos pneus da época. No ato da compra
buscava-se pneus com diametros bem próximos, afim de formar pares
equilibrados. Na época a Pneubras tinha dois compostos: o AM, mais
duro, e o AD5, mais macio. As diferenças de diâmetro poderiam
resultar na troca da corôa. Hoje essas varáveis são muito menos
significativas, os pneus melhoraram muito.
A vida de preparador
deu surgimento à Kart Zoom, hoje com sede própria a cinco minutos
do Kartódromo Internacional Granja Viana. Entre 1996 e 2014 passaram
pela Kart Zoom 75 pilotos que se tornaram campeões, ou vice, nas
competições da Granja. O total global de pilotos que aceleraram sob
o olhar de Vitor não foi registrado e é um número expressivo.
Entre os conhecidos
figuram Daniel Serra, que começou na Kart Zoom aos onze anos e
permaneceu na equipe em quase toda sua trajetória. Também pilotaram
pela Kart Zoom, Xandinho Negrão e Átila Abreu.
Um piloto que se
destacou na equipe foi Ralph Pufleb, filho de alemães que após o
kartismo foi para a F-Atlantic no Estados Unidos e se tornou campeão
no ano de estréia, fato que repercutiu por aqui na época. Só não
ficou no território americano por falta de verba. Recebeu um convite
de uma equipe da Indy Light mas conseguiu apenas a metade da verba
necessária e retornou ao Brasil.
Pilotos também
colaboram com o desenvolvimento do preparador. Foi o caso de Guga
Ribas que tinha uma estrutura muito competitiva, similar à de
Christian Fittipaldi. Guga tinha dez motores, testava todos e era um
dos melhores acertadores de chassi que Vitor conheceu. Nessa parceria
gerou-se muita aquisição de conhecimento de pista.
Para outras coisas
Vitor tinha a seu favor a sua própria capacidade de compreensão da
matéria. Um dos recursos criados por ele próprio foi um piso “zero”
(piso plano de concreto) onde ele localizava no chassi a menor altura
possível do banco e fazia as medições de deformação por torção
do chassi. Hoje a Kart Zoom possue uma mesa para essa finalidade com
quatro balanças digitais e gabaritos de posicionamento.
Transmitindo o
aprendizado.
Em 1991 Vitor criou um
curso de pilotagem com Felipe Giaffone no Kartódromo de Interlagos.
Foi nessa época que ele criou uma apostila com conteúdo próprio
que é entregue ao iniciante para leitura em casa, e posterior
discussão na pista.
Mesmo com uma bagagem
digna de nota no kartismo, Vitor se depara frequentemente com uma
característica dos atuais iniciantes, totalmente oposta na época
dele - os garotos de hoje não se interessam por conhecimentos
técnicos mais profundos.
Muita coisa colabora
para isso e Vitor reconhece que os preparadores hoje também são
responsáveis pela situação. Tudo está caro, não há muito tempo
para treinos e as conversas no box frequentemente acabam resumidas no
mesmo momento em que o piloto está pronto para acelerar.
Isso dá origem a
procedimentos não observados no passado. Alguns pedem ao piloto que
entre no box rapidamente para que a vela seja checada e isso gere
ajuste de carburação. Há quem interprete do box as tendências do
kart na pista e faça ajustes até mesmo sem o conhecimento do
pilôto. Nem todos dão atenção ao balanceamento de peso, que
habitualmente é de 60% na traseira e 40% na dianteira, com meio
tanque de combustivel, variando conforme a potencia do motor.
Vitor prefere que o
piloto aprenda a carburar corretamente na pista, procedimento muito
sensivel em motores a 2 tempos. Quando chama o piloto para o box,
muitas vezes não faz alterações e faz outra tomada de tempo em
seguida. É o cronômetro o “dedo duro” e o piloto precisa
aprender a interpretar coisas como o estado dos pneus. Vitor prefere
dividir a responsabilidade pelos ajustes com o piloto. É a forma
clássica e bem sucedida de gerar aprendizado. Nos ajustes há
detalhes mínimos que fazem a diferença como, por exemplo, medir
alinhamento no cavalete e no chão pois o peso do piloto vai gerar
alteração.
Quanto tempo é
preciso para um piloto amadurecer?
É óbvio que isso muda
de um para outro e nisso entram os preparadores, o dinheiro e o tempo
de treino disponível. Literalmente não há uma média de tempo
confiável para que alguém seja julgado maduro na pilotagem.
E um mecânico?
Para este é preciso um
longo tempo de aprendizado de pequenos detalhes, de refinamentos nos
procedimentos, adquirir conhecimento de traçados e ser também um
bom cronometrista. Um mecânico dito completo, atinge essa condição
em até dez anos.
Já que a eletrônica
entrou no kartismo também, resta uma última questão sobre um
aspecto de fato sensível. Telemetria a bordo com Alfano é bom?
Sim e não. É ruim
quando o pilôto se fixa nisso e desconcentra momentaneamente da
pilotagem. Nessas horas o clássico sinal de positivo do box ainda é
a referência para uma volta boa, que deve ser memorizada e repetida.
Após 35 anos dedicados
ao kartismo, Vitor colecionou lembranças, vitórias, amigos, fundou
família, ergueu a sede própria da equipe, é respeitado e admirado.
É também um
representante do que pode ser chamado de kartismo clássico, no qual
o pilôto guiava a sua própria receita de ajustes e preparação.
Não há dúvida de que esse modo tradicional de kartismo, onde o
pilôto sabe o que esperar mecânicamente do seu kart, é a forma
mais segura de aprender as minúcias desse esporte espetacular. A
isso ele agrega o inestimável valor de ter a capacidade de
trasnmitir o que sabe a novos pilôtos e mecânicos.
E como filho de peixe,
peixe é, seu filho Vitor segue o mesmo “traçado” do pai. É
dessas referências que necessitamos.
Nota do blog:
O autor do blog
sente uma incrível satisfação por ter escrito depoimentos de
pessoas como Paulo Manoel Combacau, Tchê, e agora Vitor Chiarella. O
título desse post se refere a um momento singular que, por várias
razões, vai ficar na lembrança – o sinal de positivo recebido na
reta, dado por um preparador que sabe quando é a hora de informar
que a pilotagem vai indo bem. São essas pequenas coisas que
valorizam a vida e justificam muitas das nossas iniciativas. Espero
que alguém que esteja lendo isso aqui, algum dia se sinta motivado a
se esforçar para merecer o dito sinal. Se isso se der sob o comando
do meu amigo Vitor, ficarei feliz.