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quinta-feira, 5 de abril de 2012

Tchê - Histórias que eu gosto de contar: Silvano Pozzi

Tchê

Tchê, como é conhecido o preparador de motores de kart Lúcio Pascual Gascòn, é um técnico de motores que dispensa comentários. A lista de pilotos para os quais preparou motores de competição é longa e inclui o maiores nomes do kartismo brasileiro. Como pessoa é um típico espanhol de personalidade forte, convicto das suas idéias, e capaz de manifestar da forma mais sutil as emoções ao lembrar de fatos e pessoas que fizeram parte da sua vida no Brasil.

É uma personalidade que mistura de forma bem equilibrada a rudeza do trabalho dentro de uma oficina de motores com a típica forma de ser dos europeus da velha guarda. Reservado mas receptivo às novas amizades, o espanhol que aportou aqui em 1960 está totalmente adaptado à vida no Brasil, mas nem por isso esquece as suas raízes e os amigos que fez durante a vida.

Diferente dos gestos comuns e padronizados da nossa sociedade atual, Tchê tem uma coisa na sua personalidade que não sei explicar. Ele fala com os olhos. Quando está falando de alguém, seja amigo, familiar, piloto ou qualquer outra pessoa que tenha importância na sua história, o olhar deixa claro que aquele momento da conversa é significativo.

E por isso mesmo a história escolhida para contar foi a sua relação com uma pessoa que há muitos anos foi referencia na preparação de motores em São Paulo. Tchê vai falar de Silvano Pozzi, pessoa a quem ele rende admiração e respeito. Foi justamente com Silvano que Tchê se desenvolveu naquilo que mais sabe fazer.

Enquanto a idade se manifesta nas rugas, a cabeça está plena de atividade, pronta para o próximo ato. No começo da conversa quando manifestei a minha dúvida sobre um título, Tchê disparou a resposta tão rápido como uma largada nas pistas: Histórias que eu gosto de contar. Bem sugestivo, típico de uma mente ativa.

Vamos então tomar conhecimento das suas histórias.


A Europa da década de 1950 era um território a ser reconstruído. Sobravam esperanças e também traumas. O final da guerra marcou o fim de uma angústia que vinha de longe. Mas apesar disso não havia garantias de que os horrores que se abateram sobre esse continente, não voltassem a acontecer. Ao mesmo tempo a América vivia o que passou a se chamar anos dourados. Aqui não se deu a destruição pela qual a Europa passou. Específicamente no Brasil a promessa era de uma fase de modernização, distante de um cenário de conflito e com um grau de liberdade maior. A indústria automobilística se instalara no país e isso colaborou para a vinda de estrangeiros para cá. Foi um período em que se notou uma forte presença de italianos e alemães na nossa indústria. Essas pessoas se mudaram para cá movidas pela esperança de vida melhor num lugar onde tudo estava por fazer e traziam consigo conhecimento, experiencia e muita vontade de trabalhar.

Tchê só entenderia o que efetivamente era o Brasil ao desembarcar aqui, e assim constatar que o país não era precisamente o que retratava o filme Black Orpheus (Orfeu Negro), que ele assistira na Europa. O filme é uma adaptação nacional da lenda grega Orfeu e Eurydice, e retrata a vida nas favelas cariocas de forma romanceada.

É engraçado notarmos que ao remexer baús de lembranças, acabamos nos deparando com entrelaçamentos de vidas cujas histórias compõem um todo e têm raízes que o justificam. O engenheiro João do Amaral Gurgel tomou contato na GM americana com o plástico reforçado com fibra de vidro, num período de estágio na empresa. O composto, até hoje utilizado em peças que necessitem de resistencia estrutural, chamou a atenção de Gurgel que viu nele a possibilidade de utilização na construção de um carro genuinamente nacional. Era o seu grande sonho que mais tarde se tornaria pesadelo e o levaria à completa falência.

No retorno ao Brasil criou em 1958 a Moplast, que fabricava luminárias, mas não abandonou o seu ideal de construir carros. Nas dependencias da Moplast, mas em ambiente separado, Gurgel deu início à sua aventura fabricando mini-carros para crianças e karts. E a pessoa de sua confiança para essa tarefa era o italiano Silvano Pozzi.

Silvano Pozzi tinha um chassi de kart construído por êle antes da sua passagem pela Moplast (O dito chassi supostamente seria chamado Italkart. Tentamos confirmar o nome com outras pessoas mas não foi possível uma confirmação concreta). Foi construído na sua anterior oficina na Alameda Nothmann. Foi por conta desse chassi que Silvano foi trabalhar com João Gurgel. Os seus minicarros eram feitos de chassis tubulares e nessa época Silvano já fazia serviços sob encomenda para Gurgel.

Da esquerda para a direita na primeira fila: Cacaio, Carol Figueiredo e Silvano Pozzi
Mais atrás no kart 27, Giovani, gerente de oficina de Claudio Daniel Rodrigues
Note que os karts são o Rois Kart de Claudio Daniel Rodrigues mas Silvano está num modelo diferente:  o seu próprio
O local é a primeira pista de karts do Brasil no Santa Cruz Country Club em Cotia
Gurgel precisava montar tres mini carros que foram levados para o primeiro Salão do Automóvel. A fábrica ficava no Ipiranga e passada a exposição no Salão do Automóvel a nova meta era a fabricação de minicarros e karts em outro galpão na Vila Mariana. Foi nesse momento que Tchê trabalhou nessa fábrica de luminárias sob as ordens de um italiano chamado Giuseppe.

Então o italiano Giuseppe, numa conversa com Silvano lhe disse que tinha uma pessôa que lhe cairia como uma luva na fábrica de mini carros. Foi assim que Tchê e Silvano Pozzi se conheceram em 1960, quando o espanhol tinha ainda 25 anos.

- Voce sabe soldar?
- Saber eu não sei mas eu me viro.
- Está bem. Eu quero uma prateleira.
- Prateleira? E como eu faço?
- Não sei.

"O Silvano era assim sêco, tipo 'eu quero, faça'. Mandou pegar os tubos e me virar. Tinha lá um encarregado chamado Donato que era muito bôa gente. Naquela época parecia que todo mundo era bôa gente. Se eu precisasse de alguma coisa perguntava.”

- Donato, como eu faço isso?
- Faça assim.

"Ele me explicava e volta e meia eu perguntava de novo. Fiz uma estrutura triangular com tres tampos. Aí veio o Silvano e perguntou se estava pronto. E ele subiu em cima da prateleira e começou a chacoalhar."

- Isso aqui tem que ficar lá em cima.

"Tínhamos tubos de chassi e tarugos de aço e o Silvano mandou colocar na prateleira. Quando a prateleira estava lotada ele começou a chacoalhar. Achei que ía cair tudo mas não caiu."

- Você está aprovado, vai trabalhar aqui!
- E lá embaixo? (a produção das luminárias)
- Esquece.

"Foi um teste. Quando o Giuseppe disse ao Silvano que eu era o cara certo para êle, o Silvano imaginou que eu poderia fazer o que êle mandasse. E foi assim mesmo, eu fazia o que êle mandava e foi ótimo, aprendi muito."

Tchê trabalhou na Moplast até Abril de 1963. Nesse período Gurgel pretendia que Tchê trabalhasse no lugar de Silvano. Êle era uma pessôa muito capacitada e isso gerou pequenos atritos entre os dois, a ponto de Silvano fechar a porta da sala para que Gurgel não entrasse lá. Silvano havia chegado ao Brasil em 1957 e não tinha dificuldades para trabalhar. Tinha o hábito de dizer que fazia o impossível na hora e que os milagres demoravam um pouco. 

"Eu aprendi muito com êle porque apenas de olhar parecia que êle desenhava de cabeça a peça que queria. Eu era o braço direito dêle. Quando êle foi embora da Moplast, já não se entendia com o Gurgel e tiveram um atrito, foi para o Canadá. Era para ter ficado rico, mas tinha o problema da família aqui e o frio de lá. Teria que mudar totalmente de vida, mudar os costumes. Quando chegou de volta me disse que queria que eu trabalhasse com êle."

Silvano ficou tres mêses no Canadá e nesse período Gurgel deu aumentos consecutivos ao Tchê. Óbviamente não queria perder o espanhol que ficara momentaneamente no lugar de Silvano Pozzi, principalmente sendo uma cria dêle.

Tchê saiu da Moplast no início de 1963. Gurgel pediu à êle para ir com Wilson Fittipaldi Jr. numa corrida de karts em Belo Horizonte com tudo pago. Tchê aceitou o convite, foi e ganharam a corrida. Foi a última corrida de Wilsinho com motor preparado por Tchê na fábrica de Gurgel, em 1 de Abril de 1963.

"No dia seguinte, 2 de Abril, fui trabalhar com Silvano. O Silvano me ligou e disse que estava na Rua Tupi, 62. Eu já estava com a minha saída acertada na Moplast. Claro que o Gurgel não gostou muito."

O motor do 'Mokart' era de 125 cc, criado por Silvano Pozzi e construído na fábrica de Gurgel onde dispunham de tôdo equipamento necessário. Em uma semana montavam um motor de competição pronto para acelerar. Os pistões eram comprados de um fabricante na Barra Funda, o Vasco.

"Naquela época se comprava o que existia. Usávamos virabrequim de lambreta, rolamento de lambreta. Íamos buscar o que servia. Era tudo feito meio na unha."

Tchê relembra algumas características dos mini carros de Gurgel, cuja produção prosseguiu após a saída de Silvano, muito embora a produção do Mokart tenha se encerrado. Os mini carros usavam um motor Briggs & Stratum 4 tempos com 5 HP's. Os carrinhos chegavam a 70 km/h e tinham uma transmissão de polias expansíveis criada por Silvano. As velocidades da transmissão se consistiam no posicionamento de uma alavanca que comandava um mecanismo projetado por Silvano, resultando em 12 velocidades escalonadas. O atrito entre Gurgel e Silvano surgiu por conta da preferencia de cada um por um tipo de produção. Enquanto os mini carros eram o ideal de Gurgel, para Silvano os karts representavam o interesse maior. Cada um desejava uma coisa diferente.

Silvano era sócio de Gurgel na construção dos karts e mini carros, na empresa que se chamava Mokart. Como os dois não se entendiam perfeitamente, Silvano começou a inventar algumas coisas. Uma delas uma pequena camioneta de carga. Mas Gurgel estava convencido de que queria fabricar carros e um dos empregados da Mokart, Leopoldo, acabou ficando sob o comando pleno de Gurgel. Leopoldo era o modelador que fazia os modelos de argila, o meio muito comum daquela época de se criar a forma final de uma carroceria, coisa que hoje em dia migrou totalmente para o ambiente computacional.

"Quando fui trabalhar com Silvano eu não sabia se ía acertar ou errar. Me interessava mais o Silvano porque com êle eu aprendia, êle me ensinava, era um outro futuro. Com o Gurgel era diferente. Ele dizia para criar uma coisa e quando estava pronto dizia que não servia. Então êle mudava e fazia à sua maneira. Eu olhava e dizia que não ía funcionar e o Gurgel respondia que se não funcionasse jogava fora."

A oficina de Silvano, para onde Tchê se mudou depois da Moplast, sobrevivia com serviços de retífica para motocicletas. No final da tarde Tchê largava o serviço dos motores de motos e ía preparar motores com Silvano. Eram quatro funcionários e com o crescimento da demanda o lugar ficou pequeno e mudaram-se para Salesópolis. A Silpo, marca cridada pelas iniciais do nome de Silvano, começou a crescer, contratou mais funcionários e começou a tomar a aparencia de uma indústria.

Um comentário:

Unknown disse...

Zé, Achei incrível sua matéria Tche merece muito esta linda homenagem, estou filmando um documentário sobre a História do Kart no Brasil, totalmente sem apoio por amor ao Kartismo e é claro que o Tche é meu personagem principal, falei com ele semana passada marcando a entrevista para outubro e ele foi muito solicito, humilde e receptivo. Tem gente que está engatinhando e não tem a sua simplicidade abç Pedro Martins cineasta, se puder veja meu Trailler ainda ñ tem o Tche mas vou filmar este ícone com certeza parabeens pela reportagem segue o Link abç sinceros

http://youtu.be/Y3V4pkrD3n8

Pedro Martins
mrsportproducoes@gmail.com